sábado, 16 de maio de 2009

Eu sei, mas não devia - Marina Colasanti



        Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma morar em apartamento de fundos e não ver outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo não se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir as cortinas. E porque não abrir as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado, a ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A deitar mais cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja número para os mortos. E aceitando os números, aceita a não acreditar nas negociações de paz. Não aceitando as negociações de paz, aceita a ler todos os dias sobre a guerra, dos números e da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez mais pagará mais e procurar mais trabalho, para ganhar dinheiro para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir revistas e ler artigos. A ligar a televisão e assistir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidades, ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. As salas fechadas de ar-condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À morte lenta dos rios. Acostuma-se a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila. Torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua o resto do corpo. Se o trabalho está duro, se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem o sono atrasado.

A gente se acostuma a não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Acostuma-se, para evitar feridas, sangramentos para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma a poupar a vida, que aos poucos se gasta e que, de tanto acostumar, se perde em si mesma.

 

Ref. Bibliográfica:

Colasanti, Marina. Eu sei, mas não devia. Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 05 jun. 2000. Caderno Estado Ecológico, p. 16.

Nenhum comentário:

Powered By Blogger

Who is?

Minha foto
Bibliófila inveterada.