
Mestre do universo
Todas as melhores histórias do mundo, na realidade, nada mais são do que uma única história, a história da fuga. É a única coisa que nos interessa a todos e todo o tempo: como fugir.
Arthur Christopher Benson (1862-1925)
As mulheres fazem coisas diferentes quando estão deprimidas. Algumas fumam, outras bebem, outras ligam para o terapeuta, algumas comem. Minha mãe costumava fi car furiosa quando ela e meu pai brigavam e, depois, se embriagava durante dias sem fi m e desaparecia dentro do quarto. Minha irmã era mais do tipo frieza total; dê-lhes um gelo e, nesse meio tempo, devore um bolo gelado Sara Lee de banana. E o que eu faço - o que sempre fi z - é sumir de tudo e de todos, mergulhando em um porre literário que pode durar vários dias.
Eu caio nesse estado por diversas razões. Às vezes é depois de uma briga do tipo "Não agüento mais olhar pra sua cara". Outras vezes, é sintomático do meu estado psicológico, tédio até o último fio de cabelo, minha vida que está bagunçada, e aquele sentimento de medo sempre que me perguntam o que ando fazendo. Como alguém pode colocar todas essas coisas em ordem? Levando tudo em consideração, prefiro ler. É a fuga perfeita.
Tenho todo um ritual para meus porres literários. Primeiro de tudo, abro uma garrafa de um bom vinho tinto. Depois desligo o celular, ligo a secretária eletrônica, reúno todos os livros que tenho a intenção de ler ou reler e ainda não o fi z. Finalmente, encho a banheiracom sais de banho de 30 dólares, dobro uma toalhinha, colocando-a na extremidade da banheira de modo que sirva de apoio para a nuca e ligo a minha música. Tenho um rádio Deco antigo de plástico azul-pálido perto da banheira que comprei em uma liquidaçãode garagem em Hollywood há alguns anos. A coisa mais esquisita: o rádio só consegue captar o sinal de uma única estação AM, que toca clássicos do jazz dos anos 1940 e 50, e é perfeito para mim.
O interior das paredes do meu banheiro é um campo reservado de sonhos e sobre o qual tenho controle total, sou a mestra de meu próprio universo elegantemente delineado. O mundo exterior desaparece aqui, há somente paz e um profundo senso de bem-estar.
A maioria das pessoas em minha vida tem uma visão distorcida disso... Como você pode chamar? Monomania? Excentricidade? Minha irmã, talvez, seja a pessoa mais diplomática de todas. Nós duas sabemos que possuo a tendência de perder minha conexão com a realidade quando me fecho dessa forma. Mas depois ela faz piadas dizendo que sou simplesmente outra bibliômana chata e que o que realmente preciso é de um pouco de ar fresco. Ela sempre foi uma maga com as palavras. Ela me contou que um livro que havia lido, de autoria de Nicholas Basbanes, adequadamente chamado Sobre osgentilmente loucos, afirma que o primeiro uso documentado da palavra bibliomania ocorreu em 1750 quando o quarto conde de Chesterfield enviou uma carta a seu fi lho ilegítimo advertindo-o que seu passatempo destrutivo com os livros deveria ser evitado tal qual "a peste bubônica". Ah, tá.
Eu tiro as roupas e as jogo no chão. Ao caminhar para a banheira, olho para o enorme espelho que vai do chão ao teto cobrindo uma parede inteira. Ai, meu Deus. Espere um minuto. Sabe quando você olha no espelho e está sempre com a mesma aparência até que, de repente, você parece dez anos mais velha? É comum que se perceba isso aos 35 anos. Minha cintura está mais grossa, meus seios estão mais caídos, o início de - mas que droga, isso aí na parte de trás das minhas coxas é celulite? Por que será que você pensa que essa coisa de idade não vai acontecer com você? Ai, veja a parte de trás dos meus cotovelos! Parecem cotovelos de uma senhora idosa, enrugados e com uma protuberância óssea.
Nunca fui capaz de imaginar minha aparência. Já me disseram que chamo atenção. Mas o que isso significa? É algo que as pessoas dizem quando não conseguem fazer os elogios normais, como "você é linda". Pode ser a minha altura, que as deixa desconcertadas. Tenho cerca de 1,80 metro, o que só recentemente virou moda. Também tenho pés enormes. Calço 41 em um dia bom.
Quando eu era jovem, odiava minha silhueta, alta, magra demais, parecendo um palito, que minha mãe descrevia como graciosa. Ela argumentava que minha beleza era especial e que seria apreciada quando eu fi casse mais velha. Apenas se dê algum tempo, ela dizia. Você vai ver. Você vai superar em esplendor todas aquelas outras meninas com corpos de ampulheta. Eu me sentia como Frankie em A convidada do casamento: "Uma aberração... pernas longas demais... ombros estreitos demais... não faço parte de clube algum e não sou membro de nada neste mundo".
Não era somente a minha aparência. Eu sempre me senti esquisita, a exceção em um mundo no qual, eu imaginava, todas as outras famílias eram normais e felizes. Virginia e eu suportamos os segredos e a vergonha de um pai ausente e uma mãe alcoólatra, e os poucos amigos que eu tinha, mantinha a distância, sempre aliviada quando eles nãovinham me visitar. A questão era que eu tinha vergonha do fato de que minha mãe não conseguia lutar, e em alguns aspectos, ela passou isso para mim.
Fechei os olhos e entrei na banheira. Propositadamente deixei a água escaldante e, quando mergulhei o pé, os dedos ficaram vermelhos e começaram a doer. Quente demais. Adicionei um pouco de água fria, deixando a água correr pelos meus dedos enquanto ouvia uma versão ruim de Coltrane detonando "Love Supreme". Paul Desmond disse uma vez que ouvir jazz de fi m de noite é como tomar Martini extra-seco. Acho que ele tem razão.
Tornei a enfiar o pé na água e então relaxei o corpo na banheira. Ainda muito quente. Girei a torneira com os dedos dos pés, adicionando mais água fria. Isso. Perfeito. Escolhi O trânsito de Vênus, um romance obscuro de Shirley Hazzard, cujo livro mais recente, O grande incêndio, tornou-se um dos favoritos dos clubes de livros. A premissa é fascinante. É sobre duas lindas irmãs órfãs cujas vidas estão predestinadas como a rotação dos planetas. Tentei me concentrar. A prosa é densa e complexa; eu vivia tendo que reler parágrafos inteiros. Comecei a devanear e me perdi. Isso não está funcionando. Basicamente, ainda estou deprimida.
"LER, VIVER E AMAR EM LOS ANGELES"
Autoras: Jennifer Kaufman e Karen Mack
Editora: Casa da Palavra
Tradução: Rogéria Pereira da Silva
Preço: R$ 39,00